Poderia a sabedoria e experiência de grandes consultores e consultorias do Brasil e do mundo estar errada? A resposta é sim.
Por Bruno Vasquez
Publicado em 06 de maio de 2025.
Pelo que se sabe, até a década de 70 a Toyota não tinha materiais escritos sobre o sistema Toyota de produção (TPS - Toyota Production System). As práticas eram transmitidas internamente exatamente como o nome diz: na prática [1]. Se considerarmos que o início mais “formal” do desenvolvimento do sistema de gestão da empresa foi a partir da década de 50, na tentativa e erro com kaizen, foram duas décadas se acostumando naturalmente com aquelas rotinas, e nada mais normal do que não precisar registrá-las para que funcionassem. E é bem evidente que registrar não significa que será repassado.
Mas daquele ponto em diante, com a situação interna bem estável, a montadora deve ter notado que a maioria das perturbações dos seus processos - em especial, a estabilidade do Just-in-Time - eram causadas por problemas de seus fornecedores [1]. Sendo assim, o que fazer?
Uma empresa sem a cultura do respeito pelas pessoas provavelmente faria o óbvio: pressionaria, puniria ou substituiria seus fornecedores. Porém, no seu melhor espírito de colaboração, a montadora decidiu criar uma divisão chamada Production Research Division, e “prestar consultoria” dentro dos seus parceiros para que estes fossem capazes de atender ao que era demandado [1]. Surge aqui o primeiro escrito oficial interno da Toyota sobre o seu sistema, que hoje você encontra sob o nome de “TPS Handbook 1973”; um material generosamente traduzido do japonês e editado por incentivo de Mark Warren e Art Smalley. Mais tarde, todo este trabalho da Toyota com seus fornecedores, seus materiais escritos e seminários, por fim, se consolidaram em um dos livros que mais recomendo para quem quer se aprofundar nas raízes: “Kanban Just-in-Time at Toyota: Management Begins at the Workplace”, da Japan Management Association, publicado pela Productivity Press.
Mas o que isso tem a ver com 5S?
Neste manual, o 5S aparece como 4S, em um capítulo sobre segurança no trabalho. Neste capítulo, a ênfase é em mostrar a relação entre a simplificação do ambiente de trabalho e do trabalho, e a quantidade de acidentes: em um ambiente onde existe somente o necessário, na melhor ordem de uso, e que é mantido limpo e padronizado, há menos oportunidades de acidente.
Nele, há um trecho muito curioso. Veja:
“Se a disposição do maquinário e equipamentos é mal projetada, então praticar os 4S não irá atingir seu objetivo. [...] Há um limite para o quanto você pode selecionar algo quando este está aumentando em complexidade. Não deve ser esquecido que pessoas, materiais e equipamentos no ambiente de trabalho não são independentes uns dos outros, mas sim, interconectados de maneira complexa.” [1]
Com selecionar, entenda como sendo o selecionar do primeiro "S".
E então, o 4S NUNCA MAIS é citado, ao longo das quase cento e cinquenta páginas do documento.
Estranho. Não era o 5S, o primeiro passo?
Os consultores de Lean não afirmam de "boca cheia" que se não se consegue sustentar o 5S, não compensa fazer nada além ou mais avançado, e assim, inicialmente, devemos nos manter com foco nele e na expansão dele?
E também não dizem que deveríamos começar pelo programa 5S quando não há maturidade no negócio?
Por que então a Toyota diria que “Se a disposição do maquinário e equipamentos é mal projetada, então praticar os 4S não irá atingir seu objetivo.” ?
Não é o 5S o que deve ser feito e consolidado antes de tudo?
Podemos chegar em uma empresa, em um processo com um layout artificialmente complicado - por falta de inteligência no tema layout - começar um programa 5S, e então este não se sustentar nos seus efeitos desejados, mas por causa da disposição do maquinário e equipamentos?
É evidente que uma mera arrumação, quer seja sua qualidade boa ou ruim, reduz alguns problemas e promove um aumento da produtividade. Isso ajuda a confirmar o viés do comece pelo 5S. Mas é um aumento disperso e pontual. Porém, também não é pecado se contentar com pouco e viver como Sísifo.
Outro ponto importante: poderia o fato de que este é citado em apenas um trecho de todo o manual, ser a evidência de que os japoneses são naturalmente disciplinados, o que inclusive é apontado como sendo o motivo de existirem versões mais originais do conceito sem a presença do S de Disciplina? Duvido muito. Primeiro, porque se fossem, sequer precisaria ser citado, segundo, os japoneses eram tão naturalmente ordeiros e disciplinados que fumavam e chegavam a urinar no chão das fábricas [2].
Mas entender este trecho do manual, na realidade, é simples. Tudo se resume a um ponto:
Simplificação do trabalho para redução de custos.
O estado perfeito, utópico que o TPS tem como referência, é o trabalho fluindo perfeitamente, sem esforço, sem interrupção, no ritmo do cliente, com a menor quantidade de recursos possível, e assim, com o menor custo possível. A simplificação é o meio para isso. Uma dessas simplificações é o layout na sequência de trabalho ao invés do layout funcional onde teríamos acúmulo de trabalho e desconexão forçada com o fluxo sequencial.
E o kaizen é o processo de simplificação do trabalho, não o 5S. O 5S é apenas mais uma ferramenta para isso. Antes de receber o nome de “kaizen”, a Toyota chamava este processo de racionalização, e racionalizar significa tornar econômico, lógico, simples. Se fossemos hierarquizar - sob risco de sermos simplistas - os conceitos, o kaizen é o meio, e um processo mais racional, o resultado que vai vir das mais diversas técnicas, sendo uma delas, o layout na sequência de trabalho. Depois, com este na sequência de trabalho, tiraríamos bom proveito de um 4S para estabilização e ainda maior simplificação do fluxo.
Figura 1. Comparação entre layouts
Observe os diagramas de layout acima e considere que D equivale a um local de armazenagem. Veja como o fluxo de material é irracional quando o layout é orientado ao processo em relação à economia que há com o layout orientado ao produto, seguindo a sequência de trabalho. Ao invés de departamentos isolados, especializados em um único processo - com várias máquinas que fazem o trabalho A, B e C agrupadas individualmente -, temos vários fluxos de processos na sequência que o produto exige, com as máquinas organizadas separadamente de acordo com esta sequência. Fonte: elaborado pelo autor.
O assunto é complexo, e merece mais profundidade. O grande entrave é que, dentro do TPS, o 5S ganha um significado diferente [2,3], e assim, ao removermos ele do contexto, aplicado como um programa isolado, perdemos sua função se o alvo for criar algo parecido com o TPS. É como tirar um órgão do corpo humano e querer que o órgão faça o que o corpo humano faz, sozinho. Por isso os programas 5S tendem a resultar em tempo, dinheiro, esforço desperdiçado, e inúmeras tentativas de implementação.
No final, se você tem planos de ter um sistema de gestão que segue a lógica do TPS, não comece por um programa 5S. Agora se sua visão de futuro para o negócio for outra, siga como quiser.
Só não reclame do resultado.
---
Um abraço e até o próximo artigo,
Bruno Vasquez
Bruno é Engenheiro de Produção e, atualmente, Mestrando em Engenharia de Produção na Universidade Estadual Paulista - UNESP.
P.S.: os assinantes da cartakaizen, além de terem recebido este texto em primeira mão em seus endereços de e-mail, ainda tiveram acesso a exercícios para praticar o tema, e há muitos outros materiais exclusivos futuros que somente eles receberão. Você pode se tornar um assinante aqui no final da página e não perder nada.
Referências
[1] 1973 Toyota Production System Manual (Updated/Complete 5 Chapters) | Paul Akers Website | Lean Books | Lean Culture n.d. https://paulakers.net/books/1973-tps-manual (acesso em 3 Maio, 2025).
[2] Brief history of 5S in Japanese Factories. HM Operations Management n.d. https://www.hmoperationsmanagement.com/post/brief-history-of-5s-in-japanese-factories (acesso em 3 Maio, 2025).
[3] TOYOTA MOTOR CORPORATION GLOBAL WEBSITE | 75 Years of TOYOTA | Production, Production Engineering, Logistics and Purchasing | Safety and Health n.d. https://www.toyota-global.com/company/history_of_toyota/75years/data/automotive_business/production/safety/index.html (acesso em 3 Maio, 2025).
Destrua e reconstrua, toda semana, seu modo de pensar
Toda segunda-feira, gratuitamente e diretamente no seu e-mail, um estudo feito à mão sobre temas de gestão para você pensar, criticar e colocar em prática na empresa onde trabalha. A cartakaizen é a leitura semanal de quem valoriza o próprio tempo, e quer aprender com referência. Assine agora. É rápido e fácil, como deve ser.