A maioria esmagadora dos profissionais do tema acredita nisso. A maioria da escolas de gestão ensina isso. O que só não é mais absurdo do que a própria comparação.
Por Bruno Vasquez
Publicado em 14 de maio de 2025.
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O tempo é implacável. Enquanto o capitalismo nos faz pensar que tudo se converte em dinheiro, na realidade, é o tique-taque do relógio quem governa sem piedade a tudo e todos, e uma vez perdido, não há volta. Sendo ele a única unidade de medida realmente universal para tudo e todos, o tempo é, assim, a "sombra do movimento": tudo o que é feito na sua vida, tem seu preço nesta moeda.
Mas, dizem lá nas redes sociais e nas escolas genéricas de cursos sem alma, que “Lean é sobre velocidade, Seis Sigma, qualidade”. Há também uma versão mais recente desta ideia ridícula, onde velocidade foi trocada por fluxo. Porém, isso, além de ser um desconhecimento total de o que deveria e como deveria funcionar o Lean, ainda é uma ofensa e demonstração de, ou falta de caráter, ou ignorância em relação ao básico de gestão de processos. O motivo? Antes, uma premissa para você ter em mente durante toda a leitura, já que estamos no clima de comparativos:
Lean é uma coisa, sistema Toyota de produção (TPS - Toyota Production System) é outra.
No sentido de que o TPS é o "original", e o Lean, aquilo que foi construído com base no que os pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology (MIT) conseguiram - ou quiseram - entender do que observaram na montadora japonesa. E inclusive, durante muito tempo, afirmaram equivocadamente ser a versão genérica da coisa, sem a marca Toyota no nome [1].
Com isso guardado na sua memória de trabalho, acompanhe. Por enquanto, é o suficiente para você entender meu ponto, já que o assunto merece um bom artigo à parte. Sigamos. Voltemos ao tempo. Assim como ele implacavelmente governa, ele implacavelmente ensina.
Há, na vida média dentro de um negócio, oito horas diárias a serem gastas com “trabalho”, certo?
O objetivo básico do trabalho, por sua vez, é atender a uma demanda: algo que alguém está precisando, e pode ser na na forma tangível, intangível, ou mista - se consideradas as devidas proporções. Em uma palavra: produto.
Pense agora em uma demanda que, no total, é composta por dez unidades do produto que a satisfaz. Podem ser exames médicos, armações de óculos, ou até mesmo funcionalidades de um software.
Agregue também a ideia de que tal produto, em situação normal, consome, em média, uma hora de trabalho. Desconsidere fadiga, pausas e ineficiências não planejadas. Imagine que estamos nas “condições ideais de temperatura e pressão”, assim como pediam nossos professores de Física da escola.
Agora, vamos calcular:
Qual a quantidade de demanda que seria possível atender, neste cenário, em oito horas de trabalho?
Simples. Oito horas de trabalho, com cada produto demandando uma hora, temos capacidade para entregar oito produtos. Certo?
Questione comigo agora, lembrando-se de que o tempo é finito, de que oito horas aqui na Terra são oito horas e pronto, que ele é a sombra do movimento, e portanto, dentro de oito horas cabem oito horas de movimento:
O que acontece com nossa velocidade de atendimento da demanda se, por problemas de qualidade, precisamos de mais uma hora para retrabalhar, corrigir uma das dez unidades do produto?
Pense nesta unidade de produto com problemas de qualidade, e imagine o cliente que estava precisando dela, e precisando em um determinado tempo de entrega, que agora será de uma hora a mais.
É possível que você já tenha percebido onde quero chegar. Ter que corrigir problemas de qualidade prejudica a velocidade, pois consome tempo.
Aqui, alguns se perderiam pensando “Ótimo, então o Seis Sigma é o par perfeito e necessário para o Lean!”.
O Lean, talvez precise. O TPS, não.
Primeiro, não foi o Seis Sigma quem inventou a qualidade, e muito menos, métodos estatísticos para tal. A Toyota, por exemplo, adotou Controle Estatístico de Processos (CEP) em 1949 [2], e ganhou o Deming Prize pela primeira vez, uma das maiores honrarias no tema qualidade, em 1965. Em seguida, conquistou a Japan Quality Medal em 1970 [3]. Já o Seis Sigma, “surgiu” na Motorola, emprestando conceitos do CEP, no FINAL da década de 80 - trinta anos depois do primeiro reconhecimento [4].
Depois, complementando aquilo que você agora sabe sobre má qualidade consumir velocidade, todo o tempo, e naturalmente, os movimentos necessários para retrabalhar e corrigir um problema de qualidade, ou mesmo os materiais descartados quando corrigir não é viável, são desperdícios:
Excessos que somente aumentam os custos, desnecessários se houvesse garantia da qualidade [5].
O objetivo do TPS é a redução de custos através da eliminação de desperdício [6], logo, tolerar a existência de 3,4 defeitos por milhão de oportunidades é inconcebível. O CEP, a padronização, sistemas poka-yoke, autonomia, andon: há dezenas de mecanismos ativos, passivos, diretos e indiretos, e robustos do TPS, que são o supra-sumo da garantia da qualidade. Mas não confunda criticar o Seis Sigma com criticar o uso de estatística. O CEP é o “avô” dele, e ele, o neto que decepciona o avô.
Simultaneamente, o conceito é não linear e linear: para se ter velocidade, é preciso qualidade, pois no TPS, qualidade é prioridade. O SQE/PC - Segurança, QUALIDADE, ENTREGA/PRODUTIVIDADE (Entrega/Velocidade) e Custo - o sistema de indicadores do TPS - não tem essa ordem à toa: Custo depende de Produtividade/Entrega/Velocidade, que depende de Qualidade (como você acabou de ver), que depende de, e não é, mais importante do que a Segurança das pessoas. Ou, considerando que nosso negócio existe para satisfazer a necessidade do cliente, há alguma vantagem em entregar no prazo - ou mais rápido do que o concorrente - um produto que, por ter problemas de qualidade, não satisfaça a dita necessidade?
Velocidade/fluxo, e qualidade, são dois lados de uma mesma moeda, e além disso, fluxo é mais adequado do que velocidade, pois Ohno era crítico das máquinas que trabalham em altíssima velocidade, pois se torna difícil perceber e tratar, com o melhor timing, pasmem: os DEFEITOS! [7]
A busca correta, o alvo correto, de toda empresa, deveria ser a maior qualidade, o menor lead time, e o menor custo. Porém, a forma linear como isso fica apresentado quando escrevemos faz parecer que são três elementos diferentes, quando na verdade, são o desdobramento de um só: o foco no cliente. Em mercados competitivos, eles compram de quem oferece a melhor combinação destes três fatores: a maior qualidade, COM o menor lead time e COM o menor custo. E se você já viu o diagrama da "casa do TPS", onde no teto temos este alvo, percebeu que quem sustenta o teto da casa são Just-in-time - controle do fluxo - E Jidoka - garantia da qualidade -, e não Just-in-time OU Jidoka [6].
Uma das versões mais adequadas e completas, dentre as possíveis, para a representação "edílica" do TPS. Fonte: Liker, 2004
No final, temos aqui novamente a mesma problemática do 5S, que foi tema da nossa edição anterior: esquartejaram tanto o “corpo humano” - o TPS -, a ponto de esquecerem como era o corpo, e agora precisam ficar inventando junções artificiais para os pedaços.
O agravante do problema é que o cérebro humano opera “melhor” com base em contrastes - sempre será delicioso e engajante apresentar as coisas por meio de comparativos -, mas para se viver e trabalhar o básico e além do básico, é preciso fazer uso daquilo que mais consome energia: o senso crítico que leva à profundidade e compreensão de forma sistêmica. É muito mais fácil acreditar em uma figura colorida do que fazer o que você acaba de fazer: estudar e ler um bom texto. Orgulhe-se.
Como afirmou o mestre Taiichi Ohno:
“Just-in-time, produtividade, custo [...]; a julgar pela lógica comum, estes elementos parecem estar cheios de aspectos contraditórios. Nós devemos quebrar esta barreira da lógica comum e fazer com estes pontos mutuamente contraditórios coexistam através do que hoje chamamos de 'fuga da lógica'.” [8]
No TPS, fluxo ou qualidade é um trade-off inválido, o que é um belo relato do contraste do pensamento ocidental, onde tudo é separado, fatiado, "ou" e do oriental, onde tudo é sistêmico.
Aliás, "o tempo é a sombra do movimento" vem de um dito japonês e é uma das sabedorias que você encontra escritas em materiais originais, externos e internos, do sistema Toyota de produção [9]:
Uma simples frase que explica melhor o TPS, e o que deveria ser o Lean, do que qualquer curso genérico por aí.
Nos vemos no próximo artigo.
Um saudoso abraço,
Bruno
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Referências
[1] Emiliani B. Critique of Lean: Pathway to Improvement. First Edition. Center for Lean Business Management, LLC, The; 2017.
[2] TOYOTA MOTOR CORPORATION GLOBAL WEBSITE | 75 Years of TOYOTA | Overall Chronological Table | 1941-1950 n.d. https://www.toyota-global.com/company/history_of_toyota/75years/data/overall_chronological_table/1941.html (acesso em 4, Maio, 2025).
[3] TOYOTA MOTOR CORPORATION GLOBAL WEBSITE | 75 Years of TOYOTA | Overall Chronological Table | 1961-1970 n.d. https://www.toyota-global.com/company/history_of_toyota/75years/data/overall_chronological_table/1961.html (acesso em 4, Maio, 2025).
[4] Wayback Machine 2005. https://web.archive.org/web/20051106025733/http://www.motorola.com/content/0,,3079,00.html (acesso em 4, Maio, 2025).
[5] Sugimori Y, Kusunoki K, Cho F, Uchikawa S. Toyota production system and Kanban system Materialization of just-in-time and respect-for-human system. International Journal of Production Research 1977;15:553–64. https://doi.org/10.1080/00207547708943149.
[6] Monden Y. Sistema Toyota de Produção: Uma Abordagem Integrada ao Just in Time. 4a edição. Bookman; 2014.
[7] Shinohara I. NPS, New Production System: JIT Crossing Industry Boundaries. Productivity Press; 1988.
[8] TPS Handbooks. Art of Lean n.d. http://artoflean.com/index.php/documents/tps-handbooks/ (acesso em 4, Maio, 2025).
[9] Kanban Just-in-time at Toyota: Management Begins at the Workplace. Productivity Press; 1986.